Na Páscoa, o bacalhau protagoniza mesas em países como Brasil e Portugal — só no Brasil, são consumidas mais de 30 mil toneladas do peixe durante o período, segundo a Associação Brasileira de Bacalhoistas. A tradição, que remonta ao século XVI, quando a Igreja Católica proibia o consumo de carne vermelha no período da Quaresma, hoje esconde uma realidade menos festiva, que são os impactos ambientais e sociais pouco discutidos, agravados pela escala industrial da pesca moderna.
Enquanto o bacalhau salgado se tornou símbolo de status e devoção, a espécie Gadus morhua — a mais cobiçada — está criticamente ameaçada em regiões como o Mar Báltico e o Atlântico Nordeste, com populações reduzidas a menos de 10% dos níveis pré-industriais, conforme dados da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Além disso, a cadeia produtiva globalizada envolve rotas comerciais que perpetuam desigualdades: países em desenvolvimento fornecem mão de obra barata para processamento, enquanto nações ricas lucram com a exportação.
Conheça cinco fatores que colocam em xeque a sustentabilidade desse prato tradicional
1. Estoque em colapso: a herança da sobrepesca
O bacalhau do Atlântico (Gadus morhua) foi vítima de uma das maiores crises de sobrepesca da história. Nos anos 1990, o Canadá decretou moratória após o colapso dos estoques, que nunca se recuperaram totalmente. Hoje, 85% das populações globais de bacalhau estão sobreexploradas ou esgotadas, segundo a FAO. A demanda da Páscoa pressiona ainda mais essa espécie de crescimento lento, que leva até 7 anos para atingir a maturidade reprodutiva.
2. Bycatch: a captura invisível (e letal)
A pesca industrial do bacalhau utiliza redes de arrasto que capturam indiscriminadamente até 20 kg de outras espécies para cada kg de bacalhau, incluindo tubarões, tartarugas e juvenis de peixes comerciais. Estudos do World Wildlife Fund (WWF) indicam que essa prática contribui para a degradação de ecossistemas marinhos inteiros, ameaçando a biodiversidade.
3. Destruição do fundo do mar: o rastro das redes
O arrasto de fundo, método comum na pesca do bacalhau, devasta habitats oceânicos como corais de águas frias e bancos de esponjas, que levam séculos para se formar. Um relatório da ONU classificou essa técnica como “análoga ao desmatamento com bulldozers”, comprometendo a capacidade de regeneração dos oceanos.
4. Pegada de carbono: uma viagem intercontinental
Curiosamente, grande parte do bacalhau consumido no Brasil é pescado na Noruega, salgado na China e depois exportado. Esse trajeto intercontinental multiplica as emissões de CO₂: um estudo da Universidade de Bergen estima que o transporte marítimo do produto final emite 30% mais gases de efeito estufa que o bacalhau fresco local.
5. Trabalho análogo à escravidão: o lado obscuro da indústria
Investigações recentes, como as da ONG Environmental Justice Foundation, revelaram condições precárias em navios de pesca de bacalhau, com relatos de trabalho forçado e violações de direitos humanos. A complexidade da cadeia de fornecedores dificulta o rastreamento da origem ética do produto que chega às mesas festivas.
Alternativas em alta
Especialistas sugerem substituir o bacalhau por peixes de cultivo sustentável, como a pescada-amarela (no Brasil) ou espécies locais de rápido crescimento. “Optar por produtos certificados pelo MSC (Marine Stewardship Council) é um passo, mas a verdadeira mudança está na diversificação de hábitos”, afirma oceanógrafa Maria Santos, da Universidade de Lisboa.
Enquanto o bacalhau permanecer como símbolo cultural imutável, sua sustentabilidade seguirá em risco. A Páscoa, momento de renovação, pode ser a oportunidade para repensar tradições à luz dos desafios ambientais do século XXI.